A Mulher Objeto

Prometi em um post anterior abordar um pouco sobre o que me incomodou na série de games Mass Effect, vou fazer isso e um pouco mais: abordar também a representação do gênero feminino na fantasia e na ficção científica, visivelmente dominadas por homens, o que acaba interferindo na maneira como as mulheres são representadas (se elas são representadas) nesses gêneros.

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Começo explicando o que considero “mulher objeto”. Por “mulher objeto” quero dizer a situação em que uma personagem mulher é inserida para realizar certas funções em relação aos personagens homens, ou então, aos consumidores, que se assume ser homens heterossexuais. Ou seja, o personagem não é mulher como uma decisão orgânica ou espontânea, e tampouco tem o seu perfil psicológico construído enquanto pessoa. Antes disso, ela é retratada como um objeto que está ali para exercer uma função em relação a um homem fictício, hipotético, ou real.

Daí surgem os arquétipos: a esposa e mãe dedicada, a sedutora, a heroína de ação, que deveria estar vestindo algo mais confortável e seguro, etc.

Mass Effect tem personagens mulheres bem construídas e diversas, e nenhuma delas, a meu ver, se encaixa no padrão mais típico de mulher objeto, mas as escorregadelas cometidas têm muito a ver com isso. O primeiro game foi lançado em 2008, o que poderia explicar, talvez, a relutância em retratar relações sexuais e/ou românticas entre pessoas de mesmo gênero.

Entretanto, relações sexuais entre mulheres e seu equivalente ocorrem de maneira bem explícita durante o primeiro jogo. Apresento-lhes a Comandante Shepard, a protagonista do game se o jogador assim quiser. Em duas oportunidades, ela pode se relacionar com personagens Asari, uma raça alienígena constituída apenas por pessoas que deveriam, pela lógica, ser hermafroditas e não possuir gênero da maneira que conhecemos. Na prática, pelo menos nos primeiros dois jogos da série, são apenas mulheres pintadas de azul.

É aí que os deslizes começam. Uma das possíveis companheiras, Liara, uma jovem Asari, é rápida em dizer que a sua espécie não tem um conceito de gênero. No entanto, nenhuma Asari foge mais explicitamente do padrão feminino humano de comportamento. Na verdade, elas são retratadas de maneira sensual e sexual dentro desse padrão.

Ademais, elas podem se reproduzir com qualquer espécie e com qualquer gênero, e também podem viver por séculos, de maneira que a monogamia como conhecemos não faz sentido. Tudo isso, em conjunto com o fato de que a Comandante Shepard só pode se relacionar ou com um homem humano ou com uma Asari, as relações entre Shepard e as Asari se tornam separadas da atração homossexual, enquanto ainda evocam a imagem do envolvimento sexual entre mulheres para causar excitação.

Isso tudo acaba transformando relacionamentos entre mulheres sáficas em um artifício comercial, em que não se explicita questões como sexualidade, divergências entre identidade e expressão de gênero, que deveriam muito bem estar ali.

Esse exemplo é importante porque ilustra a sutil diferença entre uma personagem que é “aquilo”, e a personagem que foi construída para ser “aquilo”, visando um objetivo preso ao status quo. Na maioria dos casos, existirão incoerências.

Ao passo que as Asari deveriam, em tese, ter expressões de gênero diversas, nenhuma delas, tão parecidas com o padrão feminino mais convencional, possuem gênero porque assim não poderiam ser fanservice. Além disso, a Comandante Shepard também não é clara sobre sentir-se atraída por mulheres, exclusivamente ou não, o que tornaria o espetáculo algo um pouco mais complexo, do que apenas um espetáculo para consumidores homens e héteros.

Ampliando esse conceito para casos mais gerais, vejamos as heroínas que são hipersexualizadas. Existem mulheres que gostam de se vestir da maneira mais sexy possível, mas elas não vivem para ser sexy, de forma que não iriam salvar o mundo de saltos altos desconfortáveis, com armaduras que mostrem pele, ou com decotes ineficientes. Entretanto, a lógica básica não se aplica a essas personagens, pois estão ali para ter apelo sexual às custas do senso comum.

Seguindo a linha de pensamento, vejamos as personagens mulheres femininas e submissas. Mulheres assim são reais; o que não é real é que só exista aquilo sobre suas personalidades, e que elas se atenham à isso mesmo sob grave perigo, sem ter nenhuma sequela psicológica ou física.

Novamente, elas estão ali para exercer uma função de maneira generalizada e preguiçosa, sem nenhuma profundidade ou atenção para as implicações de seu comportamento. Fantasia das mais incoerentes e inalcançáveis, vendida como modelo a ser seguido.

Devo ressaltar que é válido, por exemplo, escrever uma personagem mulher que tente se ater a um certo molde, desde que sejam demonstrados também as consequências naturais desse comportamento. Seria uma narrativa muito real, inclusive. Não é assim que muitas (e muitos também, na verdade) vivem?

Um efeito colateral desse post, cujo objetivo era apenas reclamar de Mass Effect, é a conclusão de que não é o comportamento x ou y que vai objetificar ou não uma personagem mulher (ou algo análogo à isso) e, sim, o todo, e que a desculpa de que “existem mulheres assim” não funciona, assim como a de que “não existem mulheres assim”.

Mulheres reais são diversas e multifacetadas, e personagens mulheres não merecem ser tratadas como menos que isso. E, por favor, sejam mais criativos do que pintar uma mulher dentro dos moldes vigentes de beleza com cores diferenciadas e chamar isso de raça alienígena.

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