A Sede de Yarna

Dianthus sentiu uma pedrinha cair no topo de sua cabeça e olhou, receosa, o teto instável de sua sala. As pedras pareciam soltas em seus lugares. E antes fosse só seu escritório prestes a ruir sobre sua cabeça…

Passados alguns momentos, achou melhor pegar a carta que estava lendo e sair para as muralhas que guardavam a cidadela de Yarna, lugarejo cuja segurança dependia dela e de outras três capitãs; uma delas sempre estava a postos ali no topo da muralha, próxima ao portão. O vento soprava quente e o céu não tinha nuvens.

Para além dos muros, das favelas e das fazendas, se estendia um deserto inóspito, para onde se recolheu um povo derrotado em batalha que prometera retornar. Os construtores daquela muralha levaram a promessa muito a sério e, assim, o lar de Dianthus nunca esteve menos que armado até os dentes.

Passado tanto tempo e com tantos outros problemas, vingança era uma das últimas preocupações na cabeça de Dianthus. Ela se preocupava mais com o deserto, que ameaçava engolir tudo o que conheceu. As chuvas não vinham mais; as plantas secavam no chão; as pessoas pereciam cada vez mais jovens, com suas peles marrom escuras tomadas por manchas amarelas e ressequidas. Os médicos chamavam isso de podridão.

De cima, na sala, podia ver algumas pessoas infelizes acometidas pela enfermidade, andando por entre as construções do lado de fora da muralha. A visão dali sempre fora bonita, pontuada por verdes, vermelhos, amarelos, roxos e laranjas dos cabelos de seu povo, movendo-se caoticamente ao longo das ruelas. Todos pareciam se mover mais devagar. Sedentos. Apreensivos.

Dianthus suspirou e desenrolou o pergaminho.

Capitã da Guarda em função,

Veio à minha atenção uma questão que pede por investigação cautelosa. Ouvi reclamações sobre uma certa residente que se aproveita de uma fonte de água desconhecida para manter sua plantação. Devido aos recentes problemas de falta de água, não é algo que podemos deixar passar. Peço que averigue a situação.

O nome da pessoa é Senécio. Você encontrará informações sobre ela nos arquivos da Biblioteca.

Chantini

Prefeita de Yarna

Senécio. Tudo bem. Um nome já era informação mais do que suficiente para encontrar alguém, contanto que não estivesse em fuga. Desde o nascimento até a morte, tudo sobre as habitantes de Ubax era controlado e devidamente registrado. Bastava uma curta caminhada por entre as ruas limpas da cidadela até a Biblioteca, um prédio espaçoso de quatro andares irregulares, cuja entrada principal era um enorme arco de pedra.

A Biblioteca era até pequena. Como moravam poucas pessoas ali, havia menos documentos a serem guardados, e era necessário menos pessoal para organizar e selecionar todos.

Agora que Dianthus olhava bem, o arco da entrada estava meio torto. O ângulo das laterais com o chão não era mais perpendicular; Yarna foi tomada por ângulos oblíquos e obtusos. Colunas e paredes retas passaram a existir somente em pinturas, janelas para um passado pouco a pouco sendo esquecido.

Dianthus balançou a cabeça e seguiu em frente pelo corredor ladeado por árvores ressequidas até as portas duplas que davam acesso à varanda de entrada. As portas duplas, abertas, chamavam mais a atenção dos olhos, entretanto o olhar de Dianthus se voltou para uma portinha na parede à sua esquerda.

O Repositório ficava sempre trancado, mas o acesso era livre a certos funcionários da Biblioteca e membros da Segurança, como ela própria.

Ela desceu as escadas até uma sala subterrânea cheia de arquivos. Uma seção menor era separada das demais por paredes vazadas de madeira. Dentro dela, estavam os documentos dos vivos; para além, dos mortos, ou seja, não havia muito o que fazer para saber tudo sobre a vida de Senécio.

A pasta do arquivo da tal pessoa era fina. Muito fina. Quanto mais importante fosse certa pessoa, mais alta seria a pilha de documentos gerada, começando pela avaliação física ao nascimento, passando pelos relatórios da educação básica, resultados de diversos testes de aptidão, até a alocação residencial e de função.

Se Dianthus procurasse pelos seus documentos, encontraria uma pasta mais para o lado fino. Afinal, não possuía aptidão mágica – embora todos as filhas de Nolosha tivessem, em menor ou maior grau – nem inteligência acima da média. A única coisa em que se saía bem era em combate físico, e carregaria para sempre isso consigo, na forma de um símbolo presente no pingente pendurado em seu pescoço, e bordado nos ombros e peito das suas túnicas azuis. Classe jamais passava despercebida.

Não era incomum Dianthus ser tratada como uma besta de pouca inteligência e muitos músculos. Disso veio o lembrete da Prefeita sobre os arquivos, como se Dianthus não estivesse no posto de Capitã há anos. Também por causa de sua classe, seus avisos sobre a situação de Yarna foram ignoradas pela Prefeita. Ela não ousou alertar ninguém mais, sob o risco de receber represálias por agir fora de sua função.

Do seu ponto de vista, aquela situação significava uma coisa óbvia: havia algo de errado com Nolosha, o coração pulsante no centro do território Ubax. Ao redor da gigantesca árvore, um círculo de terras férteis com chuvas regulares e rios abundantes surgiu, derrotando a ira de um deserto pouco clemente.

Se o deserto estava avançando sobre esse círculo, se as pessoas morriam mais cedo do que deveriam, pela podridão ou pela sede, se a mágica que sustentava as construções e as chuvas se enfraquecera, o que mais isso haveria de significar?

Claro que, se alguém mais percebeu isso, não quis saber. Se era um problema apenas das margens, então não era um problema de verdade.

Dianthus retornou seu foco para o a realidade, a pessoa que encontrara água. Ao abrir a pasta, logo percebeu o motivo das poucas informações: Senécio fora fadada a uma vida de reclusão já no primeiro exame. Seu par de genitais estava incompleto. Aos olhos dos demais, era uma aberração.

Assim, recebeu a educação básica, e ainda muito jovem foi mandada para uma região distante de Yarna, viver em uma fazendinha. Não podia reunir acima de certa quantia de dinheiro ou aprender ofícios que não fossem necessários para sua sobrevivência.

Longe de poder ver a questão de maneira imparcial, Dianthus fez uma careta de nojo. Seu par de genitais estava muito bem completo, obrigado. Como alguém que nem Senécio, residindo na parte mais marginal do território, conseguiu encontrar água?

E como é que havia água perto de onde morava? Talvez Dianthus estivesse errada sobre a árvore-mãe. Entretanto, em vista do que tinha observando há anos, tinha convicção da solidez de sua teoria, de maneira que a questão atiçou sua curiosidade para além dos limites do normal.

Apesar do sol escaldante da tarde e do horário de sono que perderia, Dianthus saiu dos limites da muralha, rumo a fazendinha de Senécio.

Não foi difícil encontrar a propriedade. No cenário ressequido e amarelo do que um dia fora um bosque verdejante, as cercas vivas do lugar saltavam aos olhos como a chama de uma vela numa noite escura.

Dianthus decidiu dar a volta por trás e observar em vez de bater à porta exigindo explicações. O terreno não era grande, e logo Dianthus espiava por entre os buracos das plantas que ocultavam a morada de Senécio.

A pequena casinha de pedra estava quieta. Pudera. Com aquele calor, qualquer um estaria em sua casa dormindo até o sol esfriar. A pele suada de Dianthus queimava; sua garganta arranhava de sede. Pelo menos havia se habituado à sede nos últimos anos.

A casinha era rodeada de uma variedade de pequenas hortas, e, em um dos cantos próximos a Dianthus, havia um galpão frágil de madeira, certamente usado para guardar ferramentas. A capitã estava pronta para esperar algumas horas em sua posição, quando alguém saiu pela porta dos fundos, um balde seco em mãos.

Dianthus foi pega de surpresa pela normalidade da pessoa. Cabelos amarelos raspados bem curtos, roupas grosseiras de algodão, estatura baixa, rosto fino e cansado. Senécio, à primeira vista, era alguém como outra qualquer.

Ela entrou no galpão e saiu alguns minutos depois com o balde transbordando de água. Entrou de novo em sua moradia, deixando Dianthus congelada em seu lugar devido à surpresa. Decerto não tinha como existir um riacho ou fonte de água ali. A não ser que Senécio tenha aprendido a conjurar água, feito que nem os mais poderosos chegaram perto de fazer.

A parte cautelosa da investigação acabou ali. Se Senécio podia encontrar água como bem lhe aprouvesse, como poderia manter-se em silêncio e deixar os demais habitantes serem vítimas da fome e da sede? Dianthus, ombros tensos e rosto contraído, abriu o portão de entrada à força e quase esmurrou a porta da frente da casa.

Senécio abriu apenas uma pequena brecha, mas Dianthus, enfurecida, meteu seus dedos no pequeno espaço e abriu a porta ela mesma.

Onde é que você está conseguindo água? – esbravejou, adentrando o ambiente que era uma mistura de cozinha, quarto e sala de jantar. – Hein? O que tem naquele galpão?

Não sei do que está falando.

O tom tranquilo apenas a tirou ainda mais do sério. Ela agarrou a gola da túnica de Senécio e a pressionou contra a parede.

Eu vi tudo!

Desistindo de obter resposta da aberração, Dianthus largou-a e saiu pela porta dos fundos, marchando por cima de plantas e tubérculos. Uma vez no galpão, não viu nada, até que tropeçou em cheio numa estrutura saindo do chão, de um material duro, negro e sem brilho. Era uma alavanca, conectada a um pedaço de cano. O chão estava úmido ao redor do que quer que aquilo fosse.

Senécio irrompeu no galpão.

Eu posso explicar! – arfou ela. – Por favor…

De onde você tirou água? – questionou Dianthus, a raiva dando lugar à confusão. – Você conjurou?

Senécio se aproximou da alavanca, a puxou para cima e pressionou para baixo. Um jato curto de água saiu do cano e derramou no chão.

Claro que não. Essa água aqui vem debaixo do solo… Essa coisa aqui veio do povo do deserto. Não tem nada de magia aqui.

Dianthus deu uma volta ao redor do galpão, olhando para cima e esfregando o rosto, tentando encontrar sentido em tudo que acontecera nos últimos minutos.

Nada de magia? Tem água debaixo do chão?

É. Claro que eu não poderia ter dito nada sobre isso. Você sabe o que aconteceria comigo…

Os povos do deserto eram conhecidos por duas coisas: serem desprovidos de civilidade e magia. Dianthus pouco sabia sobre essa gente, mas tinha certeza de que se conseguiam água do solo por meio daquela ferramenta desconhecida, nada disso sofria influência de Nolosha.

De maneira que aquilo configurava um método confiável de aplacar ao menos a sede dos lugares às margens, incluindo Yarna. Exceto por ser algo vindo do deserto, por meio de ninguém menos que uma aberração. Dianthus parou para observar Senécio.

Como foi que você descobriu isso? Como foi que eles descobriram isso?

Eu tentei fugir. Na verdade, estava mais para uma tentativa de me matar de sede no deserto. – disse Senécio, sem expressar qualquer emoção. – Mas eu cheguei num vilarejo afastado. Os mapas que temos devem estar errados. Se você já tiver visto um na vida, deve ter reparado que só tem gente perto de um rio, mas eu estava há dias de caminhada desse rio. Eu achava que ia morrer antes de chegar. Só que em toda casa do vilarejo tinha uma coisa dessas para fazer subir água do chão. Não precisam estar perto do rio para viver.

Não respondeu minha pergunta.

Eu fui acolhida por alguém. Fiquei com ela por umas duas semanas. Ela me cedeu uma dessas coisas e me deu instruções de como fazer funcionar, daí eu voltei. Não tenho problema em repartir minha água com ninguém. Só não quero mais morrer.

Dianthus passou os dedos por entre suas trancinhas cor rosa alaranjado e respirou fundo. Se Senécio não estivesse mentindo – e não devia estar – então havia aí uma fonte confiável de água que não dependia da árvore-mãe.

O único problema é que ambas eram, agora, passíveis de serem consideradas criminosas. Dianthus seria no máximo confinada. Senécio receberia pena capital. Mas todas ali pereceriam de fome e sede em poucos anos, e ninguém parecia se importar ou querer consertar a situação.

Talvez Dianthus fosse mesmo estúpida, porque perguntou:

Você sabe como voltar lá?

Nota da autora: É bem óbvio que existe algo maior nesse universo. Mas, para começar, achei interessante escrever esse conto. 

One Comment

  1. Adorei o texto. Gosto bastante desses textos que introduzem a fantasia sutilmente, pq soam coerentes e mesmo assim fantasiosos kkk não sei se entendeu, mas é isso. Ah… Se quiser aumentar a frequência dos contos, já pode 😀

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