Kindred – Sobre Amor e Desigualdade Racial

Capa de Kindred, por Octavia E Butler

A Editora Morro Branco, que está se tornando minha editora favorita, lançou aqui no Brasil Kindred, um romance de ficção científica pioneiro, escrito por Octavia E. Butler.

A parte da ficção científica em si é esta: em Kindred, a protagonista, Dana, tem uma ligação especial com um antepassado, Rufus, que a faz viajar no espaço-tempo para encontrá-lo. A pegadinha é que Dana é uma mulher negra, vivendo nos EUA em 1976, e Rufus é um homem branco, herdeiro de uma fazenda com escravos, vivendo no começo do século XIX em Maryland, um estado escravagista.

E isso, para mim, não foi bem o mais importante.

Kindred segue um viés bem diferente da ficção científica no geral, pois a história não é uma analogia. Ela é exatamente sobre o que pretende discutir: a sobrevivência das pessoas negras, em especial mulheres, em uma sociedade racista.

A narrativa me tocou de maneira pessoal por abordar a desigualdade racial em relacionamentos íntimos. E como o amor nesse contexto pode ser destrutivo, às vezes até mais que o puro ódio; e como as circunstâncias são tais que se é obrigado a aceitar essas destruições, grandes ou pequenas, para se ter um pouco de paz e felicidade. E como, também, pode-se resistir a tudo isso.

Uma história sobre esse tema ser autorada por uma mulher negra fez toda a diferença no enredo.

Fiquei aliviada ao ver que, por exemplo, o relacionamento de Dana com seu marido, Kevin, também um homem branco, não é erguida em um pilar de santidade, um contraponto sem defeito algum para o relacionamento extremamente problemático de Rufus com qualquer mulher negra. Mesmo segura em 1976, Dana cede certas coisas para manter seu relacionamento com Kevin harmonioso. E como o amor de Kevin, mesmo ele tentando seu melhor, ainda é uma faca de dois gumes.

A violência sexual que permeia a história também é tratada da maneira como se deve, sem fetichização ou descrições explícitas desnecessárias.

A Redenção de Can, pintura que mostra avó negra agradecendo por sua neta de pele clara, resultado de miscigenação

Octavia trata também do que a opressão faz com pessoas de mesmo status. Cria-se subdivisões, para dividir e fazer com que umas derrubem as outras. Até hoje isso é verdade; o colorismo, resquício das épocas coloniais onde os negros de pele clara eram mais “valorizados”, está aí para provar.

Outro ponto é o racismo da mulher branca. Infelizmente, tem-se a impressão de que mulheres brancas, por serem consideradas inferiores em comparação aos homens de sua cor, não seriam capazes de serem racistas com a mesma virulência que os homens. Ledo engano. Octavia é bastante sensível em abordar isso, trazendo à baila também como a mãe de Rufus, embora racista e violenta, também tinha sua própria dose de sofrimento; e isso não a fazia nem um pouco mais empática com os negros.

E, por último, a moral da história não é que Dana aceita o que deve ceder para garantir o mínimo de menor infelicidade na sua vida. É que uma hora deve-se deixar de aceitar, ou então tudo continua do mesmo jeito; que não se é responsável pela crueldade do outro, nem pela sua cura.

Das pessoas negras é esperado docilidade e submissão. Espera-se que elas demonstrem amáveis e que amem o suficiente pessoas brancas para que elas deixem de ser racistas, e isso vale em dobro para mulheres negras se relacionando de qualquer maneira com homens brancos.

O enredo de homem branco se apaixonando por uma mulher negra (ou só de cor, quem se lembra do John, em Pocahontas, deixando de ser racista e genocida em uma canção?) e, então, deixando de ser racista num piscar de olhos é muito, muito comum.

Mas o amor, cuidado e perdão de Dana não foram capazes de desviar Rufus de seu caminho, no final das contas. E nunca seriam.

Kindred trata com realismo a amálgama de sentimentos contrários que é amar e ser amado por alguém que se beneficia da sua opressão: o que se cede, o que não se pode ceder e como se equilibrar nessa fina lâmina.

Nota da autora: Vocês já participaram do sorteio no Insta do site?

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